Na saída de um plantão, uma chuva forte e persistente me fez parar embaixo de um toldo, no qual já haviam muitas pessoas aguardando ali.
De repente percebo um olhar e retribuo. Era um homem sentado no chão, coberto por sacos de lixo e um olhar de “socorro, preciso de ajuda!”.
Abaixei, olhei nos olhos desse homem e perguntei:
— O senhor está bem?
E esse homem me respondeu:
— Não minha filha, me deram alta, mas senti muitas dores andando e caí aqui.
Logo vi que ele portava uma pulseira de identificação e questionei:
— O senhor teve alta mesmo ou fugiu?
Mostrou-me os papéis dizendo:
— Tive alta minha filha, pode ver. Ninguém fez nada por mim. Me deram esse monte de papéis e esses remédios para tomar em casa, mas eu moro em Minas Gerais e não tenho dinheiro para voltar para casa.
A primeira coisa que me passou pela cabeça: Se ele não consegue andar, precisa retornar ao pronto socorro. Avisei-o que falaria com o serviço social e ele reforçou que não fizeram nada por ele e que não queria mais retornar. Mesmo assim fui até o serviço social para entender o que realmente havia acontecido, uma surpresa, a assistente social me disse:
— Ele está de alta mesmo, mas já dei dinheiro para ele ir embora (R$3,50). Ele é morador de rua, passa uns dias em um albergue aqui perto, que já entramos em contato. Se ele não consegue andar, precisa avisar o bombeiro para buscá-lo e trazê-lo de volta. E você acreditou que mora em Minas Gerais e que só queria contato com a família? Todos falam isso…. Ele é usuário de drogas, está aqui há anos e com certeza a família não quer mais nem saber dele.
Inquieta, fui embora e fiz a proposta à ele de chamar o bombeiro e retornar ao Pronto socorro, mas recusou. Nesse momento decidiu desabafar, começou a chorar e me falou:
— Minha filha, cometi um grande erro, sonhava em vir para São Paulo para ganhar dinheiro e fazer a minha vida e da minha família. Sou pedreiro há 35 anos, juntei R$ 700,00 para pagar uma pensão e deixei minha família dizendo que retornaria para proporcionar uma vida melhor.
Cheguei em São Paulo há 3 meses, dormi no albergue até encontrar uma pensão que pudesse pagar, mas fui roubado, levaram meu celular, meus documentos e meu dinheiro. Perdi contato com a minha família, a única coisa que consegui foi refazer meus documentos (conferi e realmente, um RG com data de expedição recente). Me senti invadido e fui dormir na rua. Peguei dengue, evoluiu para dengue hemorrágica, fiquei internado, magro e fraco, sem nem força para trabalhar. Fiquei com trombose e novamente fui internado. Melhorei e agora estou aqui de novo, sem nem saber o que eu tenho. A única coisa que eu queria era retornar para a minha família, mas ninguém me ajuda.
Perguntei se pelo menos sabia o nome dos filhos, tentei procurar nas redes sociais, mostrei algumas fotos para ver se era alguém da família, mas não reconheceu ninguém.Ele só queria uma passagem para Minas e disse que de lá se virava, porque conhecia todo mundo na cidade. Ao mesmo tempo que queria ajudar não podia pagar uma passagem, sem saber quem iria recebê-lo.
Liguei no terminal rodoviário do tietê e perguntei se tinham serviço social, disseram que sim, que precisava levá-lo até lá, tentariam encontrar a família dele para depois tentarem uma passagem gratuita.
Uma esperança. A possibilidade de reencontrar sua família. Como estava com dificuldade de andar levei-o de taxi até o terminal e lá pedi uma cadeira de rodas. Conversei com o serviço social e disseram que tentariam contato com a família, mas nos deparamos com muitas pessoas deitadas no chão, esperando há dias.
Aquele homem olhou pra mim e disse:
— Filha, não me deixa aqui jogado, por favor. Vão esquecer de mim aqui.
Ao mesmo tempo, acreditei na dedicação do assistente social que me atendeu e disse que tentaria de tudo, mas muita gente ainda estava lá porque a família não queria recebê-los de volta ou não conseguiram contato.
Peguei o contato do serviço social, comprei comida para alguns períodos e disse que ligaria para saber se conseguiu embarcar. Não podia fazer mais nada, ele precisava de uma viagem segura, com responsabilidade, precisava que a família o recebesse para não ficar novamente na rua.
Pedi desculpas por não pagar a passagem para ele, mas disse que precisava que ele chegasse seguro.
Fui embora e no dia seguinte pela manhã liguei no serviço social e tive uma boa notícia: a família pagou a passagem dele de volta. Pedi o telefone da família para saber se chegou bem e me disseram que sim, agradeceram e disseram que já haviam feito a procura até nos jornais, mas não haviam encontrado.
Escrevi essa vivência, não para julgarmos profissionais, mas para uma reflexão conjunta.
Nós, profissionais de saúde, precisamos exercitar a empatia, a escuta, a comunicação entre profissional-paciente, livre de julgamentos. Precisamos inserir o paciente como protagonista da história, precisamos produzir saúde e dar autonomia e dignidade.
A desospitalização tem que ser entendida como um processo e para que ocorra de maneira responsável e segura, deve haver um preparo desde a internação até a alta. A equipe deve manter uma boa comunicação entre ela e com o paciente, tornar a assistência humanizada, com um olhar sensível e individual, em busca de melhores desfechos e garantindo a segurança no atendimento.
Se acolhimento é o compromisso de dar respostas aos cidadãos de acordo com as suas necessidades, nosso plano de ação precisa ser voltado para cada indivíduo ou família, considerando a sua história, suas queixas, não somente no automatismo dos anos de experiência.
Precisamos sempre pensar que o contato com cada paciente é único e que podemos fazer a diferença na vida dele!
Emocionante!