Lesão pulmonar aguda relacionada a transfusão (TRALI) é uma reação transfusional caracterizada por uma síndrome respiratória, causada por edema pulmonar de origem não cardiogênica, que se inicia em até 6 horas após a transfusão de hemocomponentes contendo produtos do plasma humano, caracterizada por desconforto respiratório agudo, hipóxia e edema pulmonar bilateral não cardiogênico, sem evidência anterior de lesão pulmonar.
Embora o quadro sindrômico tenha sido reconhecido e descrito como TRALI apenas em 1983, é possível observar relatos de casos mais antigos e compatíveis com a síndrome.
Epidemiologia
A TRALI é a maior causa de morbidade e mortalidade relacionada à transfusão sanguínea. Embora a real incidência de TRALI seja desconhecida, é provável que ocorra subdiagnóstico e sua incidência seja subestimada. Trata-se de uma complicação relativamente rara, com incidência variando entre 1/1.120 e 1/57.810. ]
Alguns estudos mostram incidência de 1 (um) caso em 7.900 unidades de sangue total e de 1 (um caso) em 432 unidades de plasma fresco congelado transfundidas.
Tal variação da incidência observada entre os estudos pode ser devido a algumas limitações: diferentes critérios de inclusão nos estudos; diversas definições de TRALI; perfil de pacientes incluídos no estudo (paciente de hospital geral versus paciente de cuidados intensivos); necessidade de critérios clínicos e/ou fisiopatológicos para inclusão; estudos realizados antes ou durante a implementação de estratégias preventivas de TRALI.
Além disso, TRALI é um dos diagnósticos diferenciais de desconforto respiratório agudo no ato transfusional imediato; logo, deve-se considerar outros diferenciais que podem ser fatores de confusão.
Devido a esse fato, é importante reforçar que provavelmente sua incidência seja maior que a diagnosticada e notificada. Sua distribuição não varia entre os sexos, é mais comum em adultos e é rara em crianças.
Fatores de risco
Os fatores de risco de desenvolvimento da TRALI podem ser divididos em fatores relacionados ao receptor do hemocomponente e fatores relacionados à transfusão.
Fatores de risco relacionados ao receptor
Observa-se maior incidência de TRALI em várias doenças, como na doença hepática em estágio terminal, bypass coronariano, neoplasias hematológicas, transfusão maciça, ventilação mecânica, sepse e etilismo pesado.
A maior incidência nesses casos provavelmente se deve à maior chance em receber hemocomponentes advindos de maior número de doadores. Além disso, a incidência aumenta com o número de unidades transfundidas e também se mostra aumentada em tabagistas e portadores de fibrose pulmonar.
Fatores de risco relacionados à transfusão
Apesar de a TRALI estar relacionada à transfusão de hemocomponentes que contêm plasma, observa-se maior ocorrência dessa complicação quando os doadores são mulheres, sobretudo as multíparas, e quando se faz uso de sangue total, de plaquetas por aférese ou de plasma fresco congelado.
Alguns estudos mostram que o tempo de estoque do hemoderivado pode aumentar o risco de TRALI, provavelmente em decorrência de alterações ligadas ao metabolismo dos lipídeos e à hemólise. Entretanto, esses achados não foram confirmados em todos os estudos.
Apresentação clínica e diagnóstico
Devido ao fato de a disfunção pulmonar aguda ser um achado inespecífico, TRALI é um diagnóstico de exclusão, essencialmente clínico e dependente de alto grau de suspeição.
O quadro clínico de TRALI se caracteriza por dificuldade respiratória que surge durante ou nas 6 horas após a transfusão de hemocomponentes que contenham alto volume de plasma, como transfusão de sangue total, de plasma fresco congelado ou de concentrado de plaquetas.
Infiltrado pulmonar bilateral sem evidência de cardiomegalia, na radiografia de tórax, e hipoxemia confirmada por gasometria arterial estão presentes em quase todos os pacientes com TRALI.
Metade dos pacientes apresenta expectoração espumosa. Taquicardia e taquipneia são frequentemente observados, enquanto febre, hipotensão e cianose ocorrem em menos de um terço dos pacientes.
Os critérios de diagnóstico da TRALI foram definidos após consenso realizado em 2004 (Consensus Conference Committee in Toronto) e classificados como:
- suspeita de TRALI;
- possível TRALI e;
- TRALI tardia.
Não existe teste laboratorial ou exame complementar específico para o diagnóstico de TRALI.
Contudo, é mandatória a confirmação da hipoxemia, a realização de radiografia de tórax e a avaliação dos sinais vitais. A alteração mais notável nos exames laboratoriais é a queda da contagem neutrofílica no hemograma, provavelmente secundária ao sequestro dos neutrófilos na circulação pulmonar.
Para o diagnóstico, é necessária a exclusão de outras causas determinantes de edema pulmonar, particularmente da sobrecarga circulatória.
Reações transfusionais sépticas e hemolíticas, além de anafilaxia, podem simular um quadro de TRALI, embora nesta os sinais de obstrução de vias aéreas sejam predominantes, facilitando o diagnóstico diferencial.
O principal diagnóstico diferencial com TRALI na insuficiência respiratória aguda no ato transfusional é a sobrecarga circulatória associada à transfusão (TACO).
Essas síndromes são de difícil diferenciação, mas diversos parâmetros clínicos auxiliam no diagnóstico diferencial. Na TRALI, a gravidade do quadro respiratório do paciente é, na maioria das vezes, desproporcional ao volume do hemocomponente transfundido, que é, em geral, muito pequeno para resultar em hipervolemia.
Outros diagnósticos diferenciais a serem considerados em pacientes com insuficiência pulmonar após transfusão são: reação transfusional anafilática, transfusão de produtos sanguíneos contaminados com bactéria e síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA).
TRALI no Brasil
Considerando o subdiagnóstico e a subnotificação, no Brasil ainda se desconhece a incidência de TRALI, o que se deve, em parte, ao desconhecimento dessa síndrome clinica por parte de médicos e hemoterapeutas.
Em 2015, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) divulgou o “Marco conceitual e operacional de hemovigilância: guia para hemovigilância no Brasil”. Nessa publicação, é definida a classificação da correlação dos casos de TRALI com a transfusão.
No Brasil, todas as suspeitas de reação transfusional devem ser notificadas (ficha de notificação de reação transfusional).
Tratamento e prognóstico
Não existe tratamento específico para a TRALI. Em casos suspeitos, a transfusão deve ser interrompida imediatamente e o serviço de hemoterapia comunicado, para que se determine a presença de anti-HLA e anti-HNA no plasma dos doadores e, assim, sejam impedidos de futuras doações.
O manejo de TRALI é suportivo: manutenção do equilíbrio hemodinâmico do paciente e medidas precoces de suporte ventilatório, como oxigenoterapia e ventilação mecânica, se necessário. A resolução do quadro de TRALI é rápida e ocorre entre 48 e 96 horas, considerando a evolução da hipoxemia.
Devido à hipotensão, presente na maioria dos pacientes, não responder a infusão de líquidos, pode ser necessário o uso de vasopressores. Não é indicado o uso de corticosteroides.
A TRALI não causa fibrose pulmonar relevante, assim como não determina qualquer outro dano estrutural ao parênquima pulmonar. Sendo assim, não há sequela tardia aparente.
A mortalidade devido à TRALI é de 5 a 10%, mas a mortalidade em 90 dias pode chegar a 47% em populações com comorbidades de alto risco.
Prevenção
Diminuir o número de transfusões de hemocomponentes leva à redução da incidência de TRALI e deve ser considerada especialmente no caso de pacientes em cuidados críticos que possam necessitar de transfusão. Além disso, a aplicação sistemática dos protocolos pode diminuir transfusões desnecessárias e morbidades associadas.
O reconhecimento de anticorpos anti-HLA na unidade transfundida, associado à confirmação do antígeno correspondente no receptor, não tem utilidade para o manejo agudo da reação transfusional, porém tem implicações relacionadas ao doador.
Os doadores identificados que foram implicados em casos prévios de TRALI, por terem maior risco de desencadear reações em outros receptores, devem ser descartados de novas doações, especialmente para o preparo de plasma ou plaquetas.
Para aumentar a segurança do ato transfusional, o Reino Unido desqualificou, em 2004, mulheres multíparas – doadoras que tiveram três ou mais gestações – da doação de plasma devido à maior possibilidade desse hemocomponente conter anticorpos leucocitários, sendo um fator de risco para TRALI.
Com essa estratégia, houve importante redução da incidência de TRALI. Além disso, o uso predominante de plasma de doadores do sexo masculino para a transfusão de plasma congelado e concentrado de plaquetas foi adotado pelo Canadian Blood Service em 2007 como prevenção à TRALI.
Em 2009, iniciaram a coleta para aférese de plaquetas de doadores homens e mulheres sem histórico de gravidez.
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