Aprendizado de ouro

Estava me adaptando bem pela nova rotina noturna. Para quem estava acostumado com uma vida diurna, fica um pouco cansado . Sempre que chegava em casa de manhã, caia no sono. Não tinha jeito, não conseguia passar algumas horas do dia acordado. Parecia que tinha corrido uma maratona de 10km por duas vezes seguidas. Já estava algumas semanas nesse novo horário, e realmente uma coisa que sempre me diziam lá era que demora quase 1 mês para seu corpo se acostumar.

Mas como tenho uma rotina bem corrida, ainda mais ultimamente, que até tinha me esquecido de que o sono vem chegando devagarzinho depois das 2 horas. Ultimamente tenho visto muitas admissões. A Uti tem uma rotatividade grande, pois a maioria é pós operatório. Isso é um ponto positivo, porque eu me sinto bem quando alguém se recupera e vai para casa. Maioria das altas acontecem de dia, e ficamos com os leitos vazios. Há muita cirurgia a noite programada ou emergencial, que acaba vindo para nós. Estava praticamente craque em saber conduzir uma admissão junto com meus colegas e meus chefes.

Mas sempre temos alguns que são mais críticos. Ficam duas, três semanas e até meses internado. Requerem cuidados especiais, por estarem muito tempo acamados. Como a Uti é um ambiente gelado, para evitar proliferação de bactéria,os cobrimos com cobertores e aquecemos com luz. Um de meus pacientes estavam bem aquecidos, por apresentar hipotermia severa durante algum tempo, porque estava com drogas para o coração de altíssima dosagem. Tinham colocado dois cobertores. 

Eu ainda iria dar o banho naquele paciente. Chegou aquele plantonista baixinho e calado, para passar visita. Auscultou a paciente, observou, e ficou parado na frente dela. Eu só fiquei observando, porque já passei por algumas situações com ele de que tinha que adivinhar o que ele queria. Ele puxou os cobertores até a cabeça da paciente, e disse “eles também têm frio nessa região”. Eu não entendi nada, não sei se ele falou sério ou era pra me oportunar. Saiu andando. Bom, eu sei que o paciente sente frio e calor, e portanto achava que isso não era o correto. Poderíamos arranjar uma touca para cobrir. 

Então depois de algumas horas, já feito os procedimentos, ele retornou. Eu tinha o hábito de lateralizar meus pacientes por até duas horas. Fazíamos uma espécie de coxim utilizando cobertores e lençóis da unidade, e colocávamos em suas costas. Como a maioria, que fica muito tempo internado, começa a ficar inchado, principalmente nas mãos e nos pés, eu gostava de fazer uns coxins bem pequenos e deixava suas mãos e pés um pouco mais altos. O doutor veio até a mim, pela primeira vez, sem agir como um bobo, e me deu uma dia muito boa. ” eu recomendo coxins grandes igual aquele que você fez nas costas. Quanto mais alto os membros, melhor para ele, faça como ele tivesse num sofá. Deixe-o bem confortado, com os pés e as mãos para o alto. Você faria isso se tivesse as pernas cansadas não é mesmo?” , foi aí que imaginei uma cena real. Realmente quando nossas pernas estão muito cansadas de andar, botamos para o alto. Acho que essa conversa foi a primeira conversa que tive com ele. Fiquei satisfeito de ser tratado melhor por aquele médico. O agradeci e fiz o que disse. 

Meu colega que estava na mesma sala veio até a mim. “Parabéns por conseguir com que falasse com alguém que tenha menos de um mês no plantão. Olha, ele é bem difícil de se comunicar,tenho um pouco de medo dele”, disse, dando uma risadinha. Eu não tenho medo, eu só acho que todos estamos ali para prestar assistência ao paciente. Não podemos nos tratar indiferentes, pois tudo funciona em uma equipe. Nunca o tratei diferente, mesmo que ele já tenha agido como um idiota para mim. O respeito. Ele apesar de tudo é um excelente médico, não tenho como negar.